CENAS EM UMA FARMÁCIA HOMEOPÁTICA

Texto escrito em 1998.

Em 1998, tínhamos uma pequena farmácia em Pinheiros, zona oeste da cidade de São Paulo. Esse era nosso dia a dia. Parece incrível que depois de tanto tempo, as situações se repitam. Os problemas e as necessidades quase não mudam…

Cena 1 (ouvindo no telefone):

Oi, Adriana! Aqui é o Dr. …….. Como você sabe, eu sou o novo Presidente da Associação Homeopática ………. Pois é, como presidente, minha função é desenvolver usuários, e também entre a população em geral. Por isto, estou pensando em fazer uma Jornada em novembro, no dia da Homeopatia. E sabe, eu conto com o apoio de vocês no patrocínio. Precisa fazer uma mala direta, pastas, cartazes, canetas. Quero trazer aquele professor argentino também, além de uns palestrantes do Rio, de Sao Paulo e de Recife. Posso contar com você? Vou mandar detalhes por fax, esta bem?

Cena 2 (outra vez no telefone):

Adriana, tudo bem? É a Dra. ………… Eu comecei a atender no Centro Assistencial Bezerra de Menezes, aos sábados, e temos um problema: os pacientes são da periferia, carentes, e não podem comprar remédios. Eu estou pensando se nós não podemos conversar, para tentar uma forma de fornecimento especial. É um projeto social, você sabe. Bem legal! Claro, gostaria muito que você viesse visitar, conhecer como é. Será que dá para chegar a um acordo? Sei lá, a doação de uma “farmacinha”, com frascos limpos de dose, que eu mesma possa embalar. Você tem uma ideia melhor? Então posso passar aí na farmácia amanhã para conversarmos? Então, até lá. Um abraço. Obrigada.

Cena 3 (na farmácia): Entra uma mãe, simples, com um bebê no colo, e mais duas crianças, de uns quatro e sete anos. Meio rasgadinhos, meio sujinhos…

– Bom dia, moça! Será que tem aí um remedinho de erva prá bronquite do meu filho do meio aqui? Ele fica ruinzinho, chiando, perde o ar, quase fica roxo… A gente leva nos médicos, mas não adianta… Volta tudo outra vez… É só tomar uma chuvinha, mudar o tempo, e ataca… Uma vizinha falou duns remédios de ervas que curaram a filha dela. Será que tem aqui?

– Nós não vendemos remédios homeopáticos sem receita. A senhora vá a um médico homeopata, e volte com a receita, que eu preparo os medicamentos.

– Éita!!! Precisa de médico? Mas é de erva, ela não foi no médico não… A senhora não é doutora, não?

– Sou farmacêutica. Sinto muito, só com receita médica.

– E onde tem médico desses remédios de ervas? É caro? Eu não posso pagar não…

– Bom, aí é um problema. Aqui na cidade não tem não, mas lá em ……. tem uma associação que atende de graça… mas tem fila. Demora uns seis meses para atender…

– Hiii!! Vou procurar um raizeiro que tem lá pros lados de casa, ver se ele tem algum chá, alguma erva… Obrigada, moça. Pensei que ia ajudar…

– Olha, eu até gostaria, mas não posso fazer nada pela senhora.

Cena 4 (conversa entre a farmacêutica e seu marido, administrador de empresas, funcionário em uma indústria de grande porte):

– Ufa! Finalmente acabei! Blatta orientallis 1000CH! Levei duas semanas para fazer esse remédio… Não é bárbaro! Olha, todos os vidrinhos na gaveta, guardados de 10 em 10! Puxa, são 100 frascos! Tive que pegar uma gaveta extra!

– Duas semanas dinamizando? Quanto custou?

– Ah! Vou cobrar o preço normal. Sabe, vai para o estoque.

– E vai aparecer outro paciente precisando do mesmo remédio?

– É difícil… É um remédio que sai pouco… ainda mais em CH… Mas, olha só, não é uma beleza? 1000 passos a mão, com 100 sucussões no braço!

– Não sei não. Eu não faria. Mas, diga uma coisa… O paciente esperou tanto tempo?

– Nem sei… Ele ficou de ligar para o médico, para ver se podia ser em fluxo. Não ligou mais… Mas eu já fui adiantando. De qualquer forma, já está feito. É menos um para dinamizar.

– Bem, você não pensa que neste tempo todo que você perdeu, você poderia atender melhor a seus clientes, ficando lá na frente, no balcão, conversando com eles? Eu vejo tanta gente que chega aqui só querendo atenção, só querendo conversar…

– Puxa, você não entende mesmo… Não vê que um 1000CH, ainda mais de Blatta, é alguma coisa especial? Fica só pensando em quanto custou e quanto vou cobrar… Só pensa em dinheiro!

– É, mais esta farmácia tem que ir para frente, tem que se pagar. Como eh que você vai fazer tudo o que você quer: cursos, congressos, anúncios, o computador novo… Precisa dinheiro para isso. Você precisa aprender a administrar sua farmácia, até para melhorar em Qualidade, como você tanto fala. Os recursos tem que vir daqui mesmo! Não adianta você direcionar-se pelo produto! Tem que pensar no cliente: nos que vem até aqui e nos médicos homeopatas!

O farmacêutico homeopata convive com suas ansiedades técnicas e suas ansiedades de consciência em relação à classe mais carente, pela qual pouco pode fazer diretamente. Pode doar medicamentos para atendimentos sociais… mas… não participa diretamente do processo. Fica com a parte da mercadoria.

Vive dividido em relação a seus clientes: deve ficar no balcão, atendendo e conversando com eles? Ou preparar pessoalmente os medicamentos? Em relação a seus clientes principais, os médicos homeopatas, a relação nem sempre é tranquila.

Qual é o papel do farmacêutico? O que é a qualidade tao falada de uma farmácia? Como “medir” a qualidade de um medicamento? Como fica o lucro, esse vilão, que insulta o purista e põe comida na mesa do farmacêutico? O farmacêutico pode/deve indicar medicamentos? A quem deve fidelidade, ao médico, de quem é dependente, ou ao cliente/paciente, de onde vem o recurso? O que é mais importante, o remédio ou o cliente? O medicamento é o único remédio?

Nos dias atuais, qualquer jornal ou revista que fale de negócios ou comércio, ensina que “você tem que investir em seu cliente”. Isto vale para os negócios em geral. Investir no cliente, é investir no médico e no paciente. Isso vale para a farmácia homeopática.